Desafios de ‘ser estomizada’
Postaremos uma entrevista previamente publicada no Boletim do Centro de Estudos Norma Gill – BOLET (volume 1, nº 2, 2011), realizada com uma paulistana mega especial.
Diante da importância do tema e da garra que a Ana Cris tem, um SER que vem superando seus próprios desafios nesses 22 anos de estomizada, é super merecido que sua entrevista seja apresentada outra vez na estreia do site do Instituto Beatriz Yamada.
O conteúdo se mantém na íntegra, acrescentando-se somente a mudança do tempo de estomia. Ana é artista, pintora, uma arteira como ela mesma diz. Recentemente concretizou sei maior sonho: fazer uma faculdade, de Artes Visuais.
Não há limites para quem persegue seus sonhos.
Bravo, Ana! Aplausos para você!
Quando solicitamos a permissão para publicar, Ana enviou-nos um poema que escreveu tempos atrás cujo conteúdo descreve sua transformação de adolescente a mulher e, ao mesmo tempo, o processo de crise, cirurgia e recuperação. Depois do poema você pode ler a publicação da entrevista.
Menina moleca embaixo do pé de manga;
Balança a saia na inocência da sua infância;
Desconhece a dor e o amor.
É dela menina mulher forma delicada;
Aplausos com elegância no final do espetáculo de dança.
Menina mulher no palco da realidade, dança a esperança de se ver curada.
Oh! O que deras esta vida, por quê deras tanta dor!?
De onde vens tanto sofrimento! Lamento.
Lançada ao inconsciente, com mãos brancas toca a flor em um jardim selvagem.
Busca seu lugar e sua imagem.
Flor única e bela, desperta para vida;
Na manhã orvalhada se alimenta do sol;
Abre seu dia com o canto do rouxinol;
Gotas de vida anuncia um novo dia.
(Ana Cristina Rocha)
Introdução
A estomia é uma abertura realizada artificialmente em determinados órgãos do corpo. O termo correto na língua portuguesa é estomia ou estoma. Contudo popularmente, no Brasil, ostomia ou ostoma são os termos mais adotados.
A associação do termo grego stomia ao nome do órgão a ser exteriorizado deriva os diversos tipos estomias realizadas no corpo humano. Dentre as estomias destacam-se as de origem intestinal decorrentes do câncer, doenças inflamatórias e traumas, entre outras causas. Alguém pode ‘estar’ ou ‘ser’ estomizada. Sendo aqui compreendido como ‘estar’ uma condição temporária, e ‘ser’ definitiva.
Embora o objetivo principal de uma estomia seja ‘devolver’ à vida, as pessoas estomizadas passam por uma série de dificuldades, a quais precisam ser superadas a fim de conseguirem ter uma vida ‘plena’, dentro de suas limitações.
Temos a grata satisfação de publicar uma entrevista com uma Ana Cristina Rocha, uma jovem com uma longa história de convívio com ileostomia, que mesmo com grandes desafios sabe como ninguém viver a vida com otimismo e superação. Indubitavelmente, sua experiência em ‘ser estomizada’ muito contribuirá para todos os leitores.
B: Há quanto tempo você tem estomia?
AC: Estou ostomizada (ileostomizada) há 16 anos [22 atualmente]
B: Qual foi à causa da ileostomia?
AC: Por complicação na Doença de Crohn, uma doença inflamatória.
B: Quais foram (ou são) as principais dificuldades físicas, sociais e emocionais decorrentes de `ser estomizada’?
AC: Com relação às dificuldades físicas, devido ao medo de traumatizar o ostoma, posso citar a questão de ter que usar transporte público cheio, passar em catracas, usar cinto do carro, a falta de banheiros públicos e a dependência de uso de bolsa coletora. Ficar refém de um programa público de distribuição de material é muito temeroso para uma pessoa ostomizada. Como qualquer programa de governo, o de ostomias também tem suas falhas. Não somente na distribuição de verbas, mas também possui alguns gestores que muitas vezes não conhecem a real necessidade de uma pessoa com ostomia. A falta de bolsas coletoras nos causa muito temor.
Quanto às dificuldades sociais, eu nunca tive. Acho que pela forma como me posicionei diante da minha nova realidade. Não me coloco como coitada. Sempre falo da minha condição de ser ostomizada quando acho necessário.
Os aspectos emocionais foram muitos. Eu tive vergonha do meu corpo, nojo, medo de envolvimentos íntimos, as quais hoje estão em termos superadas. Mas, no começo é uma barra muito pesada para carregar. Em parte pelo desconhecimento, pois não sabemos o que é viver com estoma o resto da sua vida.
B: Que ganhos uma pessoa pode ter ao ‘ser estomizada’?
AC: O ganho a princípio não se consegue mensurar, mas acho que a vida é o maior deles. Quando se tem doença de Crohn à gente sofre muito com diarréia, e isso é muito difícil quando se está fora de casa. Com ileostomia nós também temos diarréia, mas não precisamos sair desesperadas em busca de banheiro. E isso é uma coisa positiva. Pois antes eu vivia tendo acidentes de perda fezes na roupa, nas pernas. Agora, tenho diarréia, mas elas escorrem para “sacolinha”, ou seja, minha bolsa coleta, melhor dizendo.
Sobre os ganhos sociais de ‘ser estomizada’, depois de décadas à margem sem ser considerada “perfeita” para a sociedade, sem ter programas sociais e de emprego que me apoiasse e acreditasse no meu potencial, hoje, nós ostomizados somos contemplados pelo Decreto 5.296, de 02 de dezembro de 2004, que classifica a ostomia como deficiência. Embora não me sinta deficiente, mas, sim, com limitação, e considere que uma ostomia não causa invalidez, esse decreto nos deu condições de concorremos por vagas de emprego e cotas em empresas, o que era o mais importante para nós. Contudo, como o decreto é abrangente, passamos a receber outros benefícios, como isenção em tributos fiscais na compra de automóveis, isenção em transporte público, em algumas cidades do território nacional, e passe livre estadual.
B: Como você avalia sua qualidade de vida antes e depois da ter estomia?
AC: Ao longo desses anos, eu faço a minha condição de ‘ser ostomizada’ a mais prática possível. Troco minha placa e bolsa a cada três dias. Como uma atitude preventiva, eu levo sempre na minha bolsa um conjunto de placa e bolsa e gazes. Mas, foram poucas às vezes que aconteceram acidentes. Devido a minha doença, e a forma como eu via a vida, poucas eram as atividades que eu fazia antes da ostomia. Hoje, eu faço muito mais que antes. Posso passear no parque, ir ao cinema, fazer curso de artes plásticas, andar de bicicleta e também nadar, que adoro. Passei a dar muito valor às atividades que me dão prazer.
Analisando a minha qualidade, eu diria que é muito melhor agora que antes da ostomia. Embora nesse momento, a doença esteja me causando alguns comprometimentos.
B: Nós, profissionais em estomaterapia, muito falamos em reabilitar as pessoas com estomias. Em sua opinião você acha isso possível?
AC: Eu entendo que reabilitação englobe vários fatores. Desde a recuperação da saúde física e emocional, até sua volta as atividades sociais e laborativa. No meu caso, e em muitos outros casos, esta reabilitação não acontece, ou acontece parcialmente. Veja alguns exemplos de situações que enfrentamos:
- Ostomizados quando viajam preferem não se alimentar para que o intestino não funcione, e dessa forma a bolsa não encha. Nem mesmo água eles tomam. Isso é normal?
- Muitos casais deixam de ter vida sexual. Alguns com vergonha do parceiro e outros, no caso de homens, ficam impotente.
- Fatores emocionais afligem os nossos pensamentos, alguns deles dividimos com nossos parceiros ostomizados, outros guardamos para nós, acreditando que possamos ser ingratos com Deus, uma vez que ganhamos outra vez “A VIDA”.
- Tem um ditado que diz: “ A necessidade faz o sapo pular”. Isso descreve bem minha condição, e acredito que de muitos ostomizados também.
Diante disso, eu acredito que não conseguimos atingir a tão sonhada e discutida reabilitação. Convivemos e buscamos nos adaptar. Mas, seu eu tivesse uma única chance de curar minha doença e poder fazer a reversão, eu lutaria por isso. Nada substitui o caminho natural que Deus fez.
B: Você recebeu assistência de um estomaterapeuta? Qual a importância desse enfermeiro para uma pessoa estomizada?
AC: Sim, após mais ou menos três meses de ostomizada fui encaminhada para uma estomaterapeuta. Costumo dizer que a estomaterapeuta foi a minha salvação. Eu ficava me questionando como seria minha vida com uma bolsa enorme e com feridas na pele. Será que esta é a condição de uma pessoa ostomizada? Estou fadada a viver com dor e restrições de roupas, alimentação e locomoção? Parte dessas dúvidas quem me ajudou a responder foi uma enfermeira estomaterapeuta, seu nome é Ana Junko Yamada.
Dessa forma, considero que a enfermeira estomaterapeuta é fundamental tanto pré-operatório, para realizar uma boa demarcação, como no pós-operatório, a fim de que o ostomizado e a estomaterapeuta possam, juntos, escolher melhor equipamento. Foi assim comigo e deu super certo, esta dando até hoje.
Eu, particularmente, ainda passo em consulta com a estomaterapeuta, pois para mim ela tem a mesma importância que o médico ou psicologo. Todos fazem parte de uma equipe multiprofissional, para contribuir na recuperação física e emocional do ostomizado e sua família.
B: Você tem atuado em movimentos associativos, fale da importância do mesmo?
AC: Sim, eu atuo. Fui apresentada a Associação dos Ostomizados pela Estomaterapeuta Ana. Este é outro papel fundamental da ET, colaborar para a propagação dos grupos de ostomizados, que muito contribui para troca de experiências. A associação foi fundamental para minha recuperação, encontrar pessoas como eu me fez não me sentir tão sozinha, podendo falar abertamente das minhas dúvidas, vergonhas e medos. Foi fundamental na minha formação política e atuante diante de organizações governamentais. Pude participar da Cartilha dos Jovens Ostomizados, Revista Abraso e Programa institucional de divulgação da ostomia como deficiência na Rede Globo de televisão. Fui a idealizadora e coordenadora da I Caminhada pelos Ostomizados no Estado de São Paulo. Hoje, realizo palestras em instituições hospitalares, faculdades, cursos e feiras.
Como podem ver, a associação é muito mais que um grupo de pessoas reunidas. São pessoas reunidas em busca de uma melhor condição social, que juntos discutem e buscam resolver suas dores. Fiz amigos amados e queridos.
Resumindo a Associação despertou em mim um senso crítico da vida e me fez descobrir habilidades, que antes nem poderia imaginar que poderia ter
B: Que mensagem você gostaria de deixar para outras pessoas que são estomizadas?
AC: Teria inúmeros relatos dolorosos e felizes para contar. Histórias sobre essa minha jornada não me faltam. Mas, quero deixar uma mensagem de otimismo para todos que vivem com alguma limitação, nesse caso “ser estomizado”. Não ligue a vida no automático (é difícil, eu não consigo, o que será de mim, tudo acabou). Permita-se dirigi-la, pois dessa forma encontrará inúmeras opções para expandi-la. Ouse redescobrir suas habilidades e coloque-as em prática. Viva mais a vida. Participe dos grupos de apóio e faça novos amigos. Dessa forma poderá trocar idéias, sanar dúvidas. Não deixe sua vida ficar amarrada ao passado, pensando no que perdeu, pense no que ganhou. Deus lhe permitiu estar vivo e Ele tem algo maravilhoso para sua vida. E tenha a certeza que diante de Deus você é perfeito. Deixo a sugestão de versículo bíblico.
‘E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença. E seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus”. João 9: 1-3
Contato da Ana: anacrissrocha@gmail.com
Seu estilo artístico aborda:
- Temas variados, paisagens, geométrico, floral e naturalista;
- Estética próxima do gestual, impressionista;
- Influência da arte naturalista, cultura brasileira;
- Pintou marinha, casario, paisagens mortas, cenas imaginárias e naturalista;
- Uso de cores fortes e vivas.