O sono do Caso B de DW Winnicott

Dra Beatriz Farias Alves Yamada – PhD, MSN
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta – CRP 06/127735
Cursando Psicanálise Winnicottiana no Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana – IBPW
Enfermeira Estomaterapeuta


Esse texto foi elaborado para conclusão da disciplina “Seminário Teórico-Clínico, no IBPW, dada pela Profa. Gabriela Galván. A característica do texto é científica, sendo a leitura destinada aos profissionais e acadêmicos de Psicologia ou pessoas com interesse no tema. Trata-se do levantamento dos episódios de sono de um dos casos analisados por Winnicott, denominado de Caso B, publicado no livro Holding e interpretação.


O sono

Deixa que a sua raiz vá ao fundo de sua alma. Sugue a seiva da fonte infinita de seu inconsciente e permaneça sempre verde. DW Winnicott. Explorações psicanalíticas (p. 13)


Introdução

Durante a disciplina, despertou-nos o interesse pelo sono de B, pois verificamos que em várias sessões ele dormia de súbito e acordava a seguir. Assim, alguns questionamentos nos vieram em mente:

  • Qual é o significado do adormecer num divã?
  • O que levava B ter tantos episódios de cansaço e sono durante sua análise?
  • Seria um retorno ao ‘morrer’, uma retirada da cena, um cansaço físico por falha no descanso ou excesso de atividades? Ou seria uma não possibilidade de ali estar ou falar de algo que não estava em condições de revelar-se?
  • Seria o ambiente acolhedor e de confiança que lhe permitia parar e dormir?

Certamente muitos questionamentos surgem quando abordamos o tema do sono no caso B. Neste momento, dada a complexidade do caso e objetivo do trabalho, optamos por fazer um levantamento dos episódios de sono de B, registrados no relato das análises, e apresentar algumas interpretações dadas pelo próprio Winnicott a este respeito.

Para que possamos compreender de forma mais ampla a questão do sono, faremos breve apresentação de sua fisiologia. Sem, no entanto, realizar articulação que tipo de sono o B apresentava nas sessões, uma vez que não há relatos que possam ser inferidos. De todo modo, ele se desligava, as vezes com certa sonolência e outras se entregava realmente ao sono. Havia uma alternância entre despertar e voltar a dormir.

Winnicott conta uma experiência pessoal quando adormeceu em seu quarto pensando que talvez acordasse com resposta de um caso que melhor ilustrasse o jogo do rabisco, e isso aconteceu. Dormiu, sonhou e acordou entendo que o seu sonho lhe disse o que precisaria formular1. Esse exemplo nos possibilita pensar que ao dormir, pausamos e nos desligamos da realidade externa, e nesse momento de silêncio interior pode ocorrer grande possibilidade de emergir conteúdos que sirvam para resolução de problemas ou conflitos.

No relato de outro caso de Winnicott, ele refere que uma de suas pacientes com frequência adormecia no divã, especialmente por exaustão física, por haver trabalhado muito até tarde, em função de sua profissão de atriz. Mas, num determinado dia enquanto Winnicott interpretava, ela “tombou no sono”, e aí ele verificou que esse sono tinha uma qualidade nova, um tipo específico de resistência à interpretação2. Assim, Winnicott deixa claro que há momentos em que o sono é uma necessidade física, mas outros é a resistência, que era o caso de B. A resistência em ouvir a interpretação o fazia se desligar, até que seu amadurecimento permitisse entender o cerne de sua questão emocional.


O sono e vigília

Biologicamente o sono é uma necessidade para o descanso do organismo, sendo um momento em que é acentuadamente diminuído todo metabolismo corporal a fim de recuperar a energia consumida ao longo do dia, refazer as necessidades gerais de todo organismo, especialmente o reparo do cérebro.

Um corpo sem dormir sucumbe e morre. Ao dormir, o sono mais parece a morte, dada a inconsciência durante o mesmo. Poeticamente falando, com o sono “morre-se” todas as noites, para trazer a vida novamente a cada amanhecer. Não dormir bem causa desconforto, sonolência, mal humor, cefaleia e desatenção, entre outros. Cada pessoa pode ter uma necessidade diferente de horas e sono, e uma noite bem dormida permite melhor funcionamento da “máquina” humana durante o dia. Alguns podem ter cronicamente problemas de insônia e afetar demasiadamente o viver diário, podendo levar à depressão. O ambiente para dormir deve ter escuro e silêncio, fundamentais para que o sono cumpra seu papel de cada dia.

Quando a noite chega, basicamente toda a natureza para e os animais, com raras exceções, se recolhem para seu descanso. O ser humano segue o mesmo ritual, excetuando aqueles que trabalham a noite ou têm um ciclo de sono invertido, os noturnos.

A passagem do estado de vigília para o sono segue um ritual que pode modificar-se de uma pessoa para outra. Contudo, em termos corporais há mudanças na dinâmica do mesmo3.

“E o corpo vai ficando mole, as pálpebras se fecham, a percepção do mundo vai ficando pálida e, aos poucos, o mundo exterior vai-se apagando” 3.

A sonolência deixa o corpo lento, como se estivesse despencando e rendendo-se, até chegar à inconsciência e viver bons momentos de descanso corporal e poder sonhar a vontade, já que a mente ficará trabalhado muito e se renovando. Muitas vezes experimentamos pequenos sonos durante o dia e isso produz renovação e deixa o corpo mais alerta.

Os eventos comportamentais e fisiológicos relacionados ao sono humano já foram bem investigados em settings de investigação, com possibilidades de analisar não somente com observações clínicas, bem como com o uso de equipamentos que monitoram as atividades cerebral, cardíaca, muscular e dos movimentos oculares. Durante a vigília, responde-se aos estímulos sensoriais provenientes do ambiente e o comportamento é ativo baseado na atividade motora e locomotora, com mudanças posturais pelo dinamismo muscular. Já quando se dorme, tudo se modifica diminuindo a reatividade aos estímulos externos, bem como todas as atividades do corpo3..

Tipos de sono

O sono tem dois momentos diferentes, um chamado sono de ondas lentas (com estágios de 1 a 4) e o outro REM, também chamado de paradoxal. Na fase lenta, o corpo fica com todas as atividades mais diminuídas. Na segunda fase, há um certo agito com movimentos oculares muito mais rápidos. O corpo alterna esses dois tipos a cada noventa minutos, mas vai ampliando esse tempo ao longo da noite. Ao final da noite de sono é provável que se acorde espontaneamente durante o sono paradoxal e se relate algum sonho3.

O sonho é uma experiência subjetiva que se toma conhecimento ao acordar, sendo apenas relatado verbalmente pelo sonhador, não necessariamente na sua íntegra ou como ocorreu, pois, pode ser parcial ou totalmente esquecido3.

No sono de ondas lentas também se sonha, sendo tais sonhos mais curtos, menos vívidos, menos emocionais e mais lógicos do que aqueles que ocorrem no sono REM, que são opostos: estranhos, surrealistas, ilógicos emocionais, podendo o sonhador acordar pelo peso da emoção. Os significados dos sonhos atraem a curiosidade dos de filósofos, médicos, neurocientistas, psicólogos3 e, de modo especial, dos psicanalistas. Os sonhos são vivos, envolvendo as vias da alma, os sentidos.

“Nenhuma dúvida existe que o material dos sonhos é a nossa própria vida” 3.. Portanto, o sonho pertence ao mundo privado do sonhador. Por vezes B fazia relatos de sonhos ao analista.

 


Apresentação do caso B

Winnicott escreveu o relato dos últimos seis meses da segunda análise de B, um homem com cerca de 30 anos, casado e com uma amante, inteligente, capaz de lidar com conceitos e de filosofar e tido como um homem de ideias interessantes. A sua primeira graduação foi engenharia, a mesma profissão do pai (falecido aos 18 anos de B). Mudou para medicina (uma motivação inconsciente pelo uso que fazia de Winnicott como substituto paterno) porque não se satisfez com a engenharia4.

As análises dentro do setting terapêutico, embora tenham sido realizadas em dois momentos distantes um do outro, são como se tivesse sido um somente, pois assim diz Khan, “não devemos esquecer que, para Winnicott, esta análise durou treze anos, e que depois ele manteve este paciente em sua própria memória o tempo todo4. Tudo indica que essa foi daquelas análises muito especiais para Winnicott, e agradeçamos por sua generosidade em escrever para ajudar os aprendizes, como eu, a entender um pouco de sua teoria.

O B era um paciente esquizoide-depressivo. Sua primeira análise (aos 19 anos) durou cerca de dois anos e foi interrompida devido a ocorrência da guerra. Embora B não estivesse curado, houve ‘melhora clínica’ alcançada pela análise e por sua inteligência, o que possibilitou o retorno ao trabalho. A razão para essa análise deu-se por “depressão com um colorido homossexual”, sem de fato ter qualquer homossexualidade manifesta, pois se tratava de uma não integração da sexualidade. Nesse momento, B estava com um estado de “confusão e irritabilidade”, havendo uma dissociação da personalidade. A solicitação para o atendimento foi feita pela mãe de B5.

A segunda análise B tinha cerca de 30 anos, e durou dois anos. Esta ocorreu num período em que ele teve um colapso no trabalho, e foi internado por causa de sentimentos de irrealidade e de uma incapacidade geral de lidar com o trabalho e a vida. Devido a isso, Winnicott foi chamado para avalia-lo. B. foi incapaz de procurar seu antigo analista, embora inconscientemente era isso que queria, diz Winnicott.5,6.

B era uma pessoa que reagia ao mundo externo, com um si-mesmo verdadeiro incipiente, que lhe conferia “apenas uma postura protetora”, sendo a sua dissociação atribuída por Winnicott à “experiência de alimentação ‘ideal’ na infância, que lhe roubou toda a iniciativa de desejo e necessidade. Essa amamentação possivelmente era posta por sua mãe em horários fixos, seguindo às necessidades da mãe e não as do filho. Além de oferecer as mamadas fora das demandas da criança, a mãe desaparecia a seguir, não dando a sustentação devida e nem se tornando disponível para ‘atendê-lo quando uma nova onda instintual surgisse”, e por isso a satisfação passou a ser um perigo para B, pois ao alcançá-la perdia o objeto que não tinha criado, e nem teria como criar, pois não havia oportunidade de viver a ilusão de onipotência, sentindo-se, assim, “aniquilado ao final de cada mamada”. Sua mãe teve a impossibilidade de identificar-se com seu filho, foi uma mãe perfeita, uma máquina, e assim sendo, não conseguiu ser a suficientemente boa. Esse prejuízo no desenvolvimento, fez com que B se torna submisso à ela, tendo que adaptar-se à mãe, e não o contrário. Por isso, essas falhas repercutiram na vida de B, tirando-lhe a chance de viver de modo espontâneo, pois para B, a fim de ser amado, era necessário ser perfeito para o outro4.


Episódios de sono relatados nos fragmentos do caso

Como o relato é dos últimos seis meses da segunda análise, não se sabe qual era a situação dele anteriormente a isso. Possivelmente estava muito pior, visto que tinha saído de um colapso.

A razão pela qual foi publicada somente esses seis meses também não está explicitada, pois Winnicott possuía as anotações/esboços, dos quais algumas partes estão incluídas na introdução realizada por Kahn – que teve acesso aos originais de autor. Contudo, o conteúdo publicado é de uma riqueza ímpar e mostra a trajetória de amadurecimento advinda da possibilidade de regressão à dependência dentro de um setting de confiança, onde a esperança pode florescer em B.

O homem B era uma criança, e encontrava-se naquele grupo de pessoas em estágio primitivo da formação da personalidade, onde o manejo é fundamental para o alcance do amadurecimento emocional, sendo isso que o Winnicott sempre fez, sem perder oportunidades para interpretar conteúdos, mesmo que fosse “em vão”, aparentemente.

A melhora clínica de B foi se revelando gradualmente, a ponto dele mesmo encerrar sua análise, e ao final de nove meses (tempo de uma gestação humana) enviar uma carta ao Winnicott dizendo que estava numa situação satisfatória, entendia que a análise não estava encerrada e cogitava voltar em algum momento, mesmo que fosse com outro analista. B demonstrou afetividade ao expressar sua gratidão por tudo que Winnicott fez por ele. Isso é especialmente lindo, um desabrochar para a vida a ponto de ter um gesto espontâneo.

Organização dos episódios de sono

Para a realização desse artigo, fomos marcando, durante a leitura do texto, os episódios de sono descritos por Winnicott (pode ser que tenham outros não vistos). Foram encontradas 56 datações de registros das sessões entre 27 de janeiro até 13 de julho (quando B relata que quer interromper a análise). Não há o ano nas datações, talvez na década de 50, visto ter uma conferência realizada em 1954 5. Houve, possivelmente, 59 sessões, pois, na semana seguinte a primeira, ele diz que o relato é uma síntese de três sessões 5. Seguindo o percurso das mesmas, via leitura, fomos rastreando o aparecimento de sono, e conseguimos identificar a sua ocorrência a partir de 22 de fevereiro (10ª sessão, onde há registro de que ele teve cinco minutos de atraso) até 8 de julho, totalizando 15 momentos de registros5.

O primeiro registro se sono no livro foi feito por Kahn, denotando ter sido um assunto relevante no caso a ponto de merecer constar na introdução do mesmo. Kahn diz4:

‘Não seria legítimo aplicar-lhe a palavra tédio. O tédio é um estado psíquico inerte e estático. Entediar, por sua vez, é uma postura existencial ativa, mantida através de incessante atividade mental. Daí o cansaço assustador que encontramos no paciente e que tão prontamente o capacita a modificar seu nível de consciência e a cair no SONO diante de qualquer ameaça ou perspectiva de um verdadeiro encontro com Winnicott. Esse ‘sono de divã’ forneceu ao paciente as suas experiências mais verdadeiras e era um espaço secreto onde nem os seus sonhos deixam pistas.
Continua Kahn: “Que capacidade monumental Winnicott teve de se manter ignorante. Ele deixou que tudo isso acontecesse. O paciente se queixava: ‘o problema é acordar… eu queria acordar, isto é, acordar-me e ir embora. Mas isso era impossível.

Entendo que esse acordar tinha um simbolismo não apenas para sair de seu estado de sono biológico durante o estado de vigília. Mas, o acordar para sua existência e compreensão da condição psíquica que o fazia sentir-se irreal.

“Sempre que o processo clínico se aproximava de uma troca, ele começava a dormir. Qualquer influxo acidental de excitação, numa troca física de carinho ou preocupação, poderia facilmente provocar o caos na eterna trapaça do aparato mental do paciente”. Winnicott refere que as vezes B mergulhava na análise, mas que em ‘ocasiões importantes, mas raras, ele se retraia’, e que durante esses momentos de retraimento aconteciam coisas inesperadas que às vezes conseguia relatar5. No apêndice do livro está uma conferência de Winnicott realizada sobre o tema retraimento e regressão, onde ela relata seis episódios sobre o sono.

Winnicott fez uma diferenciação entre estado regressivo e de retraimento. Khan refere que para Winnicott a palavra regressão significa simplesmente o inverso de progresso’; ‘não pode haver uma simples inversão do progresso’, pois é preciso ‘existir uma organização de ego que possibilite tal regressão’, sendo essa resultante de provisão ambiental. Numa situação clínica, esse ambiente sustentável é o que possibilitará o novo desenvolvimento emocional4, sendo toda essa sustentação oferecida por Winnicott ao logo da análise de B.

Com relação ao retraimento, Winnicott refere que se trata de ‘um desligamento momentâneo de uma relação com a realidade externa durante a vigília, e esse desligamento tem às vezes a natureza de um breve sono’ 5. E era isso que B apresentava em inúmeras sessões, um desligamento da realidade externa. O momento era de vigília, mas ele dormia diante do medo de conhecer a realidade que ainda não estava preparado para ouvir, era preciso caminhar mais em seu amadurecimento pessoal a fim de tomar consciência de sua real situação.

Cronologia dos achados de sono

Ocorrência 1 (22/2, p.54-5)5 A primeira ocorrência registrada aconteceu quando Winnicott estava realizando interpretação para mostrar ‘seu desenvolvimento rumo a uma situação triangular, e ligando a sonolência à ansiedade que ele não era capaz de sentir, mas que estava ligada a essa nova posição’ (p.54). Winnicott valida o cansaço de B, mas diz que naquele momento B não o permitia que essa fosse a explicação total. B se sente vagueando, sem poder se concentrar, e Winnicott considera que a interpretação reprimiu os pensamentos dele (p.54). Novas interpretações foram feitas sobre castração e abandono (p.54), e isso foi levando B para desejo de dormir. Winnicott acha que se deixou influenciar pelo desejo que B manifestara em ter um tratamento mais rápido (p.54), e na verdade B não tinha condição de assimilar a interpretação e por isso se afastava do contato com a realidade. Quando Winnicott diz que O sono, portanto, está relacionado a algo diverso, como agressividade, ódio ou simplesmente um medo desconhecido”, a resposta de B foi simplesmente que: “estava flutuando, muito cansado e sonolento.

Nesse episódio, vemos Winnicott já apresentando que B tinha ansiedade, certamente fruto das agonias impensáveis vividas em seu estágio primitivo, conectando com a agressividade não integrada e o consequente medo daquilo que era desconhecido. Ele ainda não possuía amadurecimento suficiente para conhecer a razão, assim a ‘melhor estratégia’, consciente ou não, era não escutar e dormir, como uma fuga da realidade ou porque os conteúdos eram insuportáveis. Assim, ao acordar, de modo geral, ele iniciava um assunto novo, mas Winnicott sempre tentava alguma outra interpretação (algumas sem efeito) a fim buscar as relações que pudessem tornar B consciente da origem de seu trauma. Ele se irritava com a ideia de Winnicott o querer fazê-lo consciente e ainda criticava a psicanálise como um método inefetivo para sua análise, aspectos esses que podem ser vistos nas narrativas a seguir. Winnicott, nesse período de relato, nos parece com certa insistência em querer interpretar, algo que ele pouco recomenda. Mas, como já estava um certo tempo analisando o B e, certamente tendo realizado até então manejo, já tinha segurança de que B precisaria das interpretações para avançar no seu desenvolvimento pessoal.

Ocorrência 2 (10/3, p.79, 81)5 Os assuntos dessa sessão eram relativos à sua mulher e seu casamento, quando B fala de seu gosto para apresentar sua esposa ao outro. Quanto Winnicott diz: “Isso coincidiria com sua fantasia de mulher com pênis”, ele notadamente começa a adormecer, e Winnicott diz que: “era improvável que houvesse escutado a interpretação” (p.79). Ainda nessa sessão, depois do sono, quando ele volta a falar, B já traz assunto da namorada, outros temas que o levam à vida onírica, assuntos da psicanálise e término de sessões. Ele passa a verbalizar sua irritação com Winnicott em querer “acordá-lo”. Sua questão não era, “perder não o sono em si, mas, sim, a interrupção da vida onírica e o risco de que o espírito saísse da pessoa e não voltasse para o corpo acordado” (B contando história dos chineses antigos). Winnicott considera que perdeu material aqui, mas não perdeu oportunidade em interpretar mais uma vez, o que levou B pressentir o final da sessão, e com isso sentir-se rejeitado.

” A análise, de certa forma, é feita no lado onírico da fronteira entre o sono e a vigília, e que ele estava chegando à posição a partir da qual pode sentir simultaneamente o chamado para adormecer e o chamado para ficar acordado” (p.81)

Ocorrência 3 (18/3, p.89) 5Nessa sessão, Winnicott comenta que B estava “começando a perceber que a escolha do que dizer podia ser parte da ansiedade (resistência)”, e B se defende respondendo que “no início, não havia problemas de repressão, havia muito a dizer, e então eu esquecia ou dormia. Estes métodos, agora, estão desgastados, e se o assunto apresenta traços desagradáveis, é necessário um novo método.” Winnicott disse-lhe: ‘eu estou bastante associado a sua esposa”. Essa interpretação foi considera por eles mesmo como duvidosa no contexto (p.89).

Ocorrência 4 (5/4, 115-16) 5Passadas algumas sessões, onde outros assuntos foram sendo tratado, o sono retorna ao setting. Winnicott fez nova interpretação que “ligava o encerramento da sessão à ideia de encerramento da análise”. B responde: “Eu estava com sono. É difícil chegar às ideias. Consigo chegar às ideias quando sonho, mas, à medida que acordo, elas parecem inadequadas. De qualquer modo, a fantasia não pode ser descrita em palavras. É mais uma forma de ação. Parece que estou à deriva”. Winnicott diz-lhe: ‘é verdade que a sonolência podia ter dois lados. “Por um lado, você está procurando ideias que não podem ser atingidas através de esforço intelectual direto. Por outro lado, você está se defendendo contra a ansiedade, quando não sabe do que se trata”. A reposta de B foi que: “As coisas que acontecem quando estou dormindo não são fatos completos. É difícil torná-las coerentes para relatá-las. Faço menos esforço em falar do hospital do que em falar sobre os pensamentos”. O problema é que eu tenho que acordar para dizer o que está acontecendo”. (Winnicott relata que o paciente disse ter se perdido. Houve bocejo, o sono estava se apresentado). Winnicott interpreta:

‘Acho que por trás da sonolência que você sente agora existe o medo de mim, que faz parte do ódio que você sente por mim por eu ter encerrado a sessão”(p.116).

Nesse episódio há mais de uma página tecendo sobre o sono, Winnicott fez alguns comentários sobre raiva e medo. Mas, o paciente dormiu por uns instantes, e ao acordar fala que esqueceu o que foi dito porque dormiu, e em seguida diz: “acabo de me lembrar de uma coisinha. Eu disse algo sobre um paciente, e alguém estava me criticando por eu ter feito isso”, e Winnicott lhe responde: Isso me faz lembrar que você recentemente falou sobre a possibilidade de que eu viesse a falar de você”. Observa-se a desconfiança que B sente de ser exposto por Winnicott.

Ocorrência 5 (19/5, p.151) 5caminhando um pouco mais nas ocorrências do sono, B costumava esquecer o que acontecia nas sessões, uma vez que se desligava do ambiente, e Winnicott sempre o relembrava.

“A minha tendência é esquecer, mas isso se manifestou de maneira especialmente nítida nas duas últimas sessões. Além disso, estou com sono outra vez, embora não exista nenhum motivo para isso, isto é, não posso dizer que estou cansado.”

Mas, nessa sessão, Winnicott decidiu não lhe lembrar, e deixar as coisas acontecerem. Algo interessante também foi Winnicott ter trazido a responsabilidade para si, talvez como uma estratégia ou por espontaneidade, dizendo que estava cansando, e que tal fato poderia ter afetado B. Mas, não perdeu a oportunidade de relembrar a crítica que B havia feito sobre a pintura do seu consultório, algo que B lembrou-se. Então, parece ter sido pensado para mostrar que B lembrava o que queria. Por outro lado, ao falar de seu cansaço, Winnicott mostra-se como alguém não perfeito, que analista se cansa, o que faz sentido com a sequência do diálogo que caminhou na direção da descoberta do não perfeito. B desabafa, admite ter ciúmes por Winnicott ter outros pacientes. Winnicott diz:

“Ao pensar em si mesmo como entediante, você está simplesmente atribuindo o meu cansaço a alguma coisa em você rejeitando a ideia de que eu tenho uma vida privada” .

Parece que B está começando a deixar de ver o Winnicott como um objeto subjetivo. A sessão continua com assuntos sobre a esposa e a namorada, entre outros. E mais uma vez depois do despertar, B consegue falar sobre seus conflitos infantis e sua dependência, abrindo diálogo para falar de sua mãe, sobre o abandono.

Ocorrência 6 (7/6, p.185-7) 5O sono volta a aparecer no texto semanas depois. Eles estavam falando sobre self intelectual e emocional, e até de protesto sobre número de sessões que já não eram diárias.

B diz que quer “se libertar de sua abordagem intelectual, que representa uma barreira, mas, se assim o fizer, ‘corria o risco de cair no sono’. Parecia que havia uma consciência de seu funcionamento puramente intelectual, e quão difícil era sair dessa trapaça (como nominou Kahn) que escondia o seu verdadeiro problema. Mesmo que tentasse escapar, a resistência se apresentava com o sono. E isso também o aborrecia porque se sentia desperdiçando a sessão, bem como desapontando ao analista [‘Eu fico acordado durante algum tempo por sua causa.”].

Winnicott interpreta: “cair no sono é realmente você”, e que mesmo que dormisse a sessão inteira, seria bom pois dormia porque está no setting, o lugar onde poderia encontrar a si mesmo. Mas, B responde que talvez ele dormisse em outros lugares, na presença de outros, o que despertava inclusive irritação da esposa. Desse modo, ele também achava que Winnicott se aborreceria e por isso tentava ficar acordado. Ele era realmente submisso ao meio e, também, se sentia não merecedor de ser amado. Essa sessão foi cercada de vários episódios de sono, a cada que vez que W. falava algo impactante para ele, como:

“Você não pode ter certeza que eu estou aqui, a menos que o seu intelecto esteja ativo’ (aqui dormiu de roncar);

“Isso é você e você é real” – “Parece que você está desafiando a ir dormir se eu quiser. É como se você estivesse me dando permissão para dormir, só que isso não nos leva a lugar nenhum. Só podemos conseguir algum progresso falando’, fala de B;

“Em relação ao seu self intelectual, há em você alguém que decide o que vai ser discutido. Estou interessado em saber como é esse alguém e o que ela acha importante”(fala de W), e B dormiu uns instantes.

Ao B revelar um sonho que falava muito, Winnicott fala sobre repressão de uma compulsão como de roubar. Talvez tenha dormido também aqui, mas mesmo assim, Winnicott diz: Você tem direito à minha atenção e o direito de dispor de meu tempo. Eu acrescentaria ainda o direito de poder desperdiçar o meu tempo; como sintoma, isso faz sentido e indica que você se sente privado de todos esses direitos.” No momento em que Winnicott disse isso, o paciente, completamente acordado, fala de um impasse, ou são os problemas do hospital ou é o sono, querendo saber a relação do sono com o agora [O que me preocupa é o presente e o que eu quero saber é como o dormir se relaciona com o agora”].

Winnicott releva que ele, B, descobriu a fúria que existia dentro dele que não encontrava expressão, sendo essa o provável sintoma atrás do sono. [“Talvez eu expresse uma tremenda raiva, que deveria ter sido dirigida contra meu pai, tempos atrás. De certa forma, eu perdi a ocasião adequada”.]

Essa fala de Winnicott acima permite B falar de seus insights: pensou que com o sono ele estava protegendo o analista de sua cólera. E o quanto estava mostrando muito pouco de seu temperamento e seu sentimento escondido que agora via com extrema fúria, temendo sobre ter acesso violento.

Essa sessão gerou grande diálogo entre eles, a ponto de B dizer de sua inquietude, não querendo deitar para não cair no sono, e ressalta que gostaria de virar de bruços, como se o Winnicott o houvesse proibido de fazer. Essa abertura possibilitou o aparecimento de vários conteúdos importantes para o amadurecimento emocional de B.

Ocorrência 7 (10/6, p.190) 5 B tenta expor seus pensamentos, mas dorme a seguir. Os diálogos durante essa sessão continuam sobre sua infância, adolescência, o pai e suas descobertas do não falar no passado. Ele passa a ter clareza de sua fuga, e tem desejo de enfrentar, mesmo não sabendo como [“sinto uma tendência de enfrentar a situação, de pensar no futuro, mas não de aceitar. “é difícil ficar acordado aqui”… Sempre que me vejo diante de um dilema, eu fujo”]. Winnicott lhe interpreta sobre seu medo [você está protegendo todo mundo de sua raiva, e dessa forma, salvando o mundo. Ao se retrair, você mantém a onipotência e salva a vida das crianças].

Ocorrência 8 (14/6, p.192, 194-5) 5Ele fala que dormiu muito na última sessão. Mas, nessa sessão dá indícios de ter despertado do sono, e pergunta sobre sua análise, as perturbações que a psicanálise produz, os riscos se parar, (como se estivesse já se planejando para isso). Mas, revela estar cansado, mas é diferente das demais ocorrências […“Hoje estou mais cansado…sinto que a possibilidade de cair no sono é menor e não corro o risco de me aproximar das coisas realmente perigosas…]

Preocupa-se com o não falar: “Sinto que se ficar calado, corro risco de não falar mais nada e dormir. Eu não posso confiar no silêncio”. Winnicott lhe diz que: ‘há algo real nesse silêncio. Ele é você mesmo, enquanto falar simplesmente por falar significa que você não tem certeza de que existe ou de que eu existo”.

Enquanto falam sobre interpretação [“você precisa de uma interpretação minha, e eu direi que você está exigindo algo de mim], o paciente começa a bocejar e adormece no momento que Winnicott interpreta seu sono

” Acho que você queria ouvir a minha interpretação, mas acabou dormindo porque estava com medo dela. Talvez você tema a interpretação certa.” . B releva sua ansiedade dizendo: ‘Eu temo a descoberta de alguma coisa, como se eu fosse levar uma pancada na cabeça.”

A sessão caminha sobre a questão de ser amado, e Winnicott o leva a questão da identificação materna com ele, dizendo: “você sente falta da identificação de sua mãe com você, com o bebê dela”. Dito isso, B responde algo espetacular que aponta para o seu entendimento pessoal do dormir:

“Dormir não é algo puramente negativo ou uma simples fuga. É um elemento que lhe dá chance de avançar.”
W. responde afirmativamente: Sim, a minha única chance”.

Ocorrência 9 (15/6, p.196-7, 199) 5 Uma sessão muito valiosa e cheia de descobertas de que a causa do sono de B era também decorrente da desesperança de ser amado ou desejado pelo que ele era e não pelo realizava. Desse modo, a perfeição era sua única alternativa. Retraia-se para evitar o ataque direto, e surgiu a dificuldade de conversar. Esse insight o faz pensar que sua mãe sofria da mesma incapacidade, a desesperança que culminou o desejo de ser perfeita. Ser obcecado por uma necessidade de agradar todo mundo, para poder obter amor e respeito.

Winnicott fala sobre seu pai, B volta a ter sono, mas já percebendo-se com sono. Contudo, uma interpretação o fez dormir de súbito [“Quando você dorme, você me deixa cair. Você nunca teve mãe, por isso não podia deixa-la cair.].

Ao acordar, ele fala que o Winnicott é um homem mau e cria uma “desculpa” do emprego para não vir na semana seguinte [Talvez não possa vir semana que vem por causa da mudança de emprego. Eu talvez não queira vir porque você é um homem mau que descobre aquilo que eu não queira que fosse]. Assim, já dava prenúncio de sua despedida da terapia.

Ocorrência 10 (17/6, p.202) 5Na sessão seguinte B sente-se com sono. Mas começa a ter medo de ter sono e ter novas descobertas. Winnicott se apresenta com uma mãe suficientemente boa que o ama na medida certa. Nas demais sessões B começa a sentir medo de ter a doença esquizofrenia, e que suas filhas também recebam a herança. Ele fala de sua esposa, e W. aponta diferenças entre ela a mãe de B, dando certa tranquilidade de havia identificação da esposa com as filhas.

Ocorrência 11 (24/6, p.214-16) 5Eles estavam falando sobre sua sensação de ainda se sentir irreal, sobre esperança de ser amado e sobre a aceitação da realidade feita por um falso self. A sonolência aparece novamente, mas Winnicott entende que essa sonolência não tem relação com o que está sendo dito [“A sonolência não tem relação direta com o que está sendo dito; ela é reação à falta de perspectiva da situação geral.” ]. Episódios de sono foram acontecendo na medida que Winnicott falava sobre sua presença (analista) com B e seu medo de perder o contato com ele. Ao B coloca a mão no rosto, Winnicott realiza uma interpretação que sua própria mão desempenhava papel de mãe para afaga-lo, e B. dorme de imediato.

Ocorrência 12 (28/6, p.219, 220) 5B fica indignado consigo por haver esquecido ao aniversário da filha e ter ficado chocado com sua falta de entusiasmo. Winnicott acha que ele dormiu quando abordava assuntos sobre suas dificuldades de ser espontâneo. O B se sente artificial, e que seu sentimento de irrealidade se dá pela falta de espontaneidade, considerando que o esforço em si já é artificial. Mais adiante, no momento que Winnicott interpreta sua raiva ele dorme.

“Creio que você está sentindo raiva. Se você estiver próximo de momentos em houve fracasso, a raiva deve estar presente (dormiu). Você sentia necessidade de que alguém o segurasse, de alguém cuidasse de você durante o sono”.

B refere ter muito sono tanto na casa da sogra quanto da mãe. ‘Talvez pedindo apoio e tenha desejo de sentar ou deitar. Ele deseja dar vazão a sua raiva de não ter sido acariciado quando bebê. Sente que sua dificuldade é o medo da raiva. Winnicott interpreta que é dele que B estava com raiva por não segurá-lo, sendo isso o fracasso original manifestando-se no presente. B. está com integração suficiente para suportar os efeitos da raiva, já se percebe que há algum mecanismo interno que lhe diz estar bem.

Ocorrência 13 (29/6, p.222-3) 5B estava falando sobre maternagem: passar sobre um processo ou sentir raiva por não ter tido no momento certo, quando o Winnicott diz: ” veremos no decorrer no tratamento”, ele dorme. Winnicott refere que parecia que ao se aproximar da ideia de um confronto com o pai, ele se viu novamente diante da questão de saber se valeria ou não a pena, além de falar sobre a relação fraca e pouco fundamentada com a mãe. B fica sonolento. Mas, ele disse que não estava, era apenas uma pausa porque não estava conseguindo acompanhar o ritmo.

Ocorrência 14 (1/7, p.227) 5Houve um ‘embate’ entre eles por causa do sono. Winnicott chega a dizer que quando B dorme o abandona. E o assunto foi muito direto a questão das falhas maternas

Ocorrência 15 (8/7, p.244) 5B dormiu e sentiu muito aborrecido com ele por desperdiçar tempo.


Considerações

B, um esquizoide-depressivo, sofria de ansiedades e descobriu uma fúria dentro dele que não encontrava expressão. A fúria latente era um sintoma que se expressava atrás de um sono no divã. O sono de B tinha também uma relação com uma desesperança de ser amado ou desejado pelo que era e não pelo que realizava. Diante da impossibilidade de entrar em contato com essa realidade, ele caia no sono a cada vez que, pela interpretação, Winnicott tentava trazer-lhe à consciência sua problemática, decorrente de uma mãe com incapacidade de se identificar com ele, e que agia de modo mecânico como uma mãe perfeita. O processo de análise possibilitou B compreender que “dormir não é algo puramente negativo ou uma simples fuga. É um elemento que lhe deu chance de avançar.” Foi n0 silêncio, enquanto dormia, que B teve sua chance de integrar-se suficientemente para levar sua vida avante.

Referências da bibliografia consultada

1.Winnicott. DWW. Adendo a “A localização da Experiência Cultural. In: Winnicott C; Shepperd R; Davis M. Explorações psicanalíticas de DW Winnicott. Cap. 20, p. 157. Artes Médicas. 1994.

2. Winnicott. DWW. Nada no centro. In: Winnicott C; Shepperd R; Davis M. Explorações psicanalíticas de DW Winnicott. Cap. 10, p.42. Artes Médicas. 1994.

3. Lent, R. 100 milhões de neurônios? Conceitos Fundamentais de neurociência. 2ª ed. – São Paulo: Editora Atheneu, 2010).

4. Kahn, MMR. Introdução. In: Winnicott, DW. Holding e interpretação. Ed. Martins Fontes. 2010.

5. Winnicott, DW. Holding e interpretação. Ed. Martins Fontes. 2010.

6. Galván, G. O caso B: a mãe perfeita e a constituição do si-mesmo. In: Winnicott na Escola de São Paulo. DWE , 2011


Agradecimento à Psicóloga Karin Telles pela leitura prévia e sugestões.
Esse trabalho foi elaborado em fevereiro de 2019.

A Depressão na Visão da Psicanálise Winnicottiana

Dra Beatriz Farias Alves Yamada – PhD, MSN
Psicoterapeuta, Analista Winnicottiana (em formação no Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana) e Estomaterapeuta
CRP 06/127735


Este é um texto com características científicas, destinado a profissionais e acadêmicos de Psicologia ou pessoas com interesse no tema. Sua linguagem segue os pressupostos da Teoria do Amadurecimento Emocional desenvolvida pelo psicanalista e pediatra inglês Donald Wood Winnicott, um gênio que desenvolveu um outro olhar para a Psicanálise.


Será que há um lado bom na depressão?

Winnicott responde claramente que:

A depressão, por mais intolerável que seja, é sinômino de saúde porque revela que a unidade da personalidade foi alcançada. (D W Winnicott)

A depressão é uma doença crescente no mundo e, a depender do tipo, se não tratada corretamente com medicamentos e análise/psicoterapia, é grande o risco de danos à personalidade (PD), com repercussoões em inúmeras esferas da vida, especialmente relacionais. A análise de pessoas com depressão torna-se uma constante nos consultórios dos analistas e a teoria winnicotiana ganha espaço nesse contexto já muito medicalizado, porque ele lança um olhar diferente de outras teorias. Antes de falar sobre a visão winnicottiana apresento a concepção da medicina e dados da epidemiologia.

Segundo o DSM-5, a depressão é considerada um transtorno depressivo (TD) com variações nas manifestações, sendo estas do tipo: maior; bipolar I e II; devido a outra condição médica; induzido por substâncias ou medicamentos ou o tipo persistente (distimia). A mais grave, o transtorno depressivo maior (TDM), é caracterizado ‘por episódios de humor deprimido ou interesse ou prazer diminuido que duram, no mínimo, duas semanas e que são acompanhados por sintomas associados característicos (alterações de sono, apetite ou nível de atividade; fadiga; dificuldade em se concentrar; sentimentos de desvalia ou culpa excessiva; ideação ou comportamento suicida)’, somente podendo ser diagnosticado como diferencial dos demais transtornos citados1. O diagnóstico se faz clinicamente, com a possibilidade de adotar instrumentos de auto-relato para auxílio, como o Beck Depression Inventory (BDI) que é validado e reconhecido pelo Conselho Federal de Psicologia. O BDI2 tem 21 afirmações de sintomas depressivos e, a depender da intensidade, categoriza-se de mínima à grave depressão. Os sintomas relacionam-se a: tristeza, pessimismo, sentimento de fracasso, culpa, punição, ideias suicidas, entre outros.

Os TD ocorrem em qualquer fase da vida. Em dados epidemológicos brasileiros constatou-se: 5,7% em adolescentes gaúchos3; 39,4% em mulheres capixabas no pós-parto4; 16,2% na população geral de Florianópolis (2,2% em mulheres; 22,7% nos idosos; 30,7% viúvos ou separados; 18,1% nos mais pobres e 29,1% nos pacientes com mais doenças crônicas. Dos idosos, 76,6% não foram questinados na consulta médica sobre sintomas)5.

Sobre a visão winnicottiana, será apresentado um conteúdo extraído da obra publicado por Maraes (2014)6, psicológa e psicanalista winnicotiana docente do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana.

Winnicott, diferente de Freud que considerava a depressão como uma das patologias narcísicas, pontua que a origem desta é associada ao amadurecimento (no estágio da conquista do concernimento), sendo tarefa fundamental para o bebê, pois é a fase onde a unidade psico-soma precisará lidar com as tensões instintuais, com sentimentos e afetos relativos às fantasias conscientes e inconscientes decorrentes do relacionamento dual.

Uma grande diferença da visão de Winnicott das demais é que este entende que a depressão, por mais intolerável que seja, é sinômino de saúde porque revela que a unidade da PD foi alcançada. Ele defende que, mesmo quando há quadros psiquiátricos e distúrbios afetivos severos, a intregração tem sua assinatura no humor depressivo e nas defesas antidepressivas que se instauram, pois isso demonstra haver indício de certo grau de amadurecimento e força do ego (integração). O mal estar e desconforto decorrem da dificuldade de aceitar os sentimentos de seu mundo interno. Embora os reconheça, não os tolera.

Ressalte-se o quanto as pessoas ao redor têm dificuldade de conviver com um depressivo, especialmente em casos mais graves, o que certamente causa mais dificuldades para quem já está em sofrimento. Mas para Winnicott, por mais terrível que seja, é reveladora da integração pessoal. Porém, ele adverte que, mesmo sendo saúde, a depressão pertence à psicopatologia, pois tem caráter de doença devido aos processos inconscientes, à culpa e ao elemento destrutivo inerente ao amor; podendo ser severa, incapacitante e até durar a vida inteira.

O bebê (bem como o paciente em análise), ao concernir-se, se recolhe sempre que precisa de tempo para reordenar seu mundo, e isso se assemelha à depressão. Esse estado se repete por toda a vida, inúmeras vezes nas experiências humanas.

A depressão abarca desde manifestações do estar vivo até quadros ‘quase psicóticos’, sendo denominada como reativa (simples ou patológica) ou psicótica. Assim, para a condução clínica adequada, diante de estado depressivo, é fundamental a difrenciação por meio do conhecimento da história inicial do paciente e de sua maturidade pessoal, a fim de analisar se a integração obtida possibilita suportar a carga da doença, “o peso da responsabilidade e da culpa sem precisar o tempo todo usar defesas antidepressivas ou mesmo a própria depressão para manter os instintos ameaçadores sobe controle”. A esperança em si e no outro é a condição para a recuperação da depressão reativa (DR), sendo essa, portanto, uma dica clínica a ser obervada no paciente.

A DR é entendida como “estados depressivos experenciados pelas pessoas que alcançaram o concernimento, a capacidade para sentir tristeza e para reagir à perda de maneira organizada”. Essa pessoa, ao passar pelo concernimento (no estágio da dependência relativa), recebeu adequada provisão de cuidados maternos até o alcance do EU SOU, quando é capaz de admitir e aceitar a destrutividade como pessoal. A DR simples é passageira, parte do ciclo benígno, é “conquista do amadurecimento, observada no retraimento e introspecção em relação ao que é externo, e que ocorre diante da culpa, da preocupação ou arrependimento a respeito do resultado das experiências institivas relacionadas ao amor e à destrutividade”. Já a DR patológica surge como reação à perda, e é comparada ao luto. Não decorre da perda em si, mas sim da incapacidade de lidar com esta devido a dificuldade de assumir como pessoais os sentimentos e afetos, bons ou maus, experienciados na ocorrência da perda. Winnicott assemelha esse tipo a neurose, na qual pode-se realizar interpretação. O analista precisa reconhecer que o paciente é capaz de lidar com a culpa, ambivalência e impulsos agressivos sem ruptura da PD, verificando se invoca defesas primárias ou secundárias ao lidar com a perda.

Com relação a depressão psicótica (DP), esta é um distúrbio de afetividade, onde o concernimento/círculo benigno não foi estabelecido ou, se foi, quebrou-se. Ocorre uma desesperança pela incapacidade de buscar o objeto, é uma depressão com impurezas, onde o humor está permanentemente alterado, pois a agressão, a destrutividade e ambivalência nos relacionamentos geram dúvidas e confusões que colocam em risco a integridade pessoal. Também reprimem por incapacidade de suportar a culpa pelos maus sentimentos do mundo pessoal, que o fazem atuar (com hipocondria, paralização como ex.). Os sujeitos com DP têm foco em si mesmos, sendo desconfiados e reservados, com dificuldades de se relacionarem e trabalhar, e precisam de assistência multiprofissional. Há uso de defesas primitivas, por não tolerarem destrutividade, e interrupção da tendência inata para integração, revelando imaturidade pessoal, que se assemelha a esquizofrenia.

Essa é uma concepção distinta das demais teorias, pois embora Winnicott considere ser uma psicopatologia, traz, à luz de sua teoria, algo muito importante para a saúde emocional que a integração da personalidade. Aos interessados em ampliar a compreensão do tema, sugerimos consultar a referência 6.

Referências

  1. First MB. Manual de diagnóstico diferencial do DSM-5. Artmed, 2015.
  2. Cunha JA. Manual da versão em português das escalas Beck. Casa do Psicólogo, 2001.
  3. Reppold CT, Hutz SC. Prevalência de indicadores de depressão entre adolescentes no Rio Grande do Sul. Avaliação Psicológica, 2003, (2)2.
  4. RUSCHI et al. Depressão pós-parto em amostra brasileira. Rev Psiquiatr RS. 2007;29(3).
  5. Boing et al. Depressão e doenças crônicas. Rev Saúde Pública 2012;46(4)
  6. Moraes AARE. Depressão na obra de Winnicott. DWW editorial (2014).